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domingo, 16 de novembro de 2008

Cabo Anselmo: Mereço Justiça, não Justiçamento

Por José Anselmo dos Santos – o “Cabo” Anselmo

A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça não tem o direito de justiçar a própria história. Comete uma injustiça quando ignora o pedido de indenização para José Anselmo dos Santos. A Lei de Anistia me dá esse direito, reconhecido a outros cidadãos. Inclusive, o atual Presidente da República, Lula da Silva.

Não quero indenizações milionárias. Quero apenas o que avalio ser justo. Por isso, não aceito a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça de empurrar o julgamento do meu pedido de anistia para o próximo governo. Como tantos outros, mereço um julgamento. E não o justiçamento que a história mal contada e seus vencedores ideológicos têm me imposto.

Nunca tive a chance honesta de revelar a minha versão da história. Nas poucas chances em que fui ouvido por três jornalistas, tive a minha versão completamente adulterada e deturpada. O tal Cabo Anselmo – a quem a versão mentirosa da história atribui mil e uma barbaridades – não existe. É obra de ficção. Quem “existe” é José Anselmo dos Santos. E minha realidade é dramática.

Não tenho sequer minha identidade. A Marinha, de forma inconstitucional e incompreensível, nega a expedir meu documento. Assim, sou condenado à inexistência oficial. A Comissão de Anistia não julga meu pedido de anistia. Sou o único não-anistiado pós-64.

Em suma, transformei-me em um morto-vivo, que sobrevive à própria sorte, graças a ajuda de alguns amigos. Estou velho e cansado de tudo. Não sou bandido, nem mocinho. Quero apenas minha verdade história restabelecida, com um mínimo de justiça e dignidade.

Senhores, da Comissão de Anistia. Quando fui pego pelos órgãos de repressão, a escolha imposta ao preso era: fala ou morre! Enrolei enquanto pude, mesmo sob tortura. Eu era naquele instante, prisioneiro dos mais temíveis inimigos, dos mais execrados torturadores. Muitos, de ambos os lados daquela guerra, ocupam hoje postos de direção desta nação. São alguém. Eu continuo nada.

E todos parecem buscar uma direção diferente daquela que os mobilizava naquela época. Os “inimigos” da pátria têm hoje a face mais visível, mais bem delineada. Sobrevivi como um fantasma. Passei todos estes anos escondido de mim mesmo temendo a represália de antigos companheiros, cuja fúria se voltaria contra a minha pessoa com intensidade igual ou superior àquela do aparelho policial repressivo da ditadura militar.

Forneci todos os elementos que fizeram de mim mesmo o ser mais odiado por uns e desprezível por outros. Odiado pelos ideólogos defensores da ditadura do proletariado. Fui refém dos ativistas e dirigentes daquelas organizações que diziam querer salvar a humanidade obrigando-a a abrir mão das paixões humanas, do seu caráter naturalmente predador, de suas opiniões individuais egoístas. Enfim desta tendência visceral que cada um tem de mandar e obter obediência cega do outro.

Não vou saber explicar por que escolhi afastar-me da trilha que me transformaria num assassino, assaltante de propriedades privadas, seqüestrador, um ser que deveria odiar, capaz de eliminar todos quantos fossem contrários aos fins da “luta revolucionária”, “da luta proletária”, “da civilização comunista”. Só sei que tomei consciência de que aquele não era o caminho, nem para mim, nem para o Brasil.

Tudo quanto havia vivido e experimentado naqueles subterrâneos de luta armada me desqualificava como ser humano, da maneira como havia apreendido a ser humano: um portador da ação produtiva continuada, capaz de perdoar, capaz de corrigir-se, capaz de respeitar o outro, mesmo que a opinião, os motivos e métodos de busca da felicidade e bem estar fossem diferenciados, dessemelhantes dos meus.

Na juventude buscava a verdade e como todo jovem romântico fui movido pela paixão. O companheirismo me fazia sentir igual aos outros carentes espirituais e materiais. Nós, jovens daquela época, fomos movidos, conduzidos para modificar o meio, (“fazer a história coletiva!”) antes de modificar-nos a nos mesmos, modificar a história pessoal.

Era melhor agir em grupo, unir forças de Davis contra os Golias da vida. No meio da estrada parecia tardio para muitos reconhecer os erros, voltar atrás. O comprometimento, mais induzido que voluntário, plantava as dúvidas.

Foi quando me defrontei com a escolha: assassinar e suicidar-me por uma causa que iria comprometer a pouca liberdade, a fé, os costumes e a vida de milhares ou colocar-me ao lado do que estava convencido ser o lado do interesse dos brasileiros: paz, tranqüilidade para o trabalho, busca da dignidade, criar as próprias famílias com o próprio esforço.

Colocar bombas, fazer emboscadas, assaltar bancos, seqüestrar, destruir, odiar, “tornar-me uma máquina fria de matar” doando a vida a serviço de uma possível futura ditadura totalitária; uma ditadura de quem o povo brasileiro receberia tudo de mão beijada, uma ditadura senhora de todos os bens e de todo o fruto do sacrifício diário dos que produziam a vida, seria negar princípios e valores plantados no berço.

O “cachorro”, o “traidor”, estava aterrorizado com os métodos dos que reprimiam os revolucionários. Mas os revolucionários, pelo treinamento que eu recebera, tratariam os oponentes e quantos milhões lhes fossem contrários com muito maior ferocidade (se chegassem um dia a ter um exército de seguidores nas condições teorizadas pelos intelectuais e escrevinhadores de documentos da “esquerda”).

Nenhuma vida seria poupada. Não restaria pedra sobre pedra em seu caminho. Pesou na minha escolha a lembrança da família, dos amigos de infância, do orgulho moral e ético, da religiosidade, dos costumes em que fui educado.

Convivi, naquela guerra, com pessoas cujo discurso e atitudes em nada prestigiavam o discurso humano, de ambos os lados. Em nada dignificavam o que se combinou chamar de civilização. A distância do cristianismo que aprendi, então, era infinita.

Em ambos os lados, convivi e vi como se exercitava a grosseria mais animalesca. Nunca fui conivente com ela. Posso jurar por Deus e por minha consciência. Jamais cometi os crimes que me são atribuídos. Sinto-me um morto-vivo justiçado pela história que os vencedores pós-64 escreveram a maneira deles.

Busquei situar-me em posição eqüidistante. Continuo buscando a ilha de tolerância, onde possa compartir a prática e aprendizado de virtudes mais nobres. As dificuldades da vida me ensinaram a ter humildade e a respeitar os outros. Infelizmente, isso não é o que acontece no mundo presente.

Chegamos a um estado de terrorismo, hoje atribuído aos bandidos que se multiplicam aterrorizando os que buscam viver suas vidas dignamente. Não vejo diferença entre o terrorismo dos “bandidos” e o “banditismo” que envolvia as ações dos guerrilheiros – a violência, o desprezo à vida, a ignorância, o desespero, são semelhantes.

Em sã consciência sinto tristeza e compaixão! Os direitos humanos, na prática, desprezam o que aprendi como características do que está convencionado entender-se como humanidade.

Desta minha prisão moral e material que limita tanta gente, peço, humildemente, à Comissão de Anistia um mínimo de racionalidade e obediência às Leis vigentes. Sou um sobrevivente sexagenário, em extrema pobreza.

Como a maioria da população, marginal sem nome, trabalhei e contribuí com os impostos pagos pelo feijão, arroz e cigarro que consumi. Por ironia da história, até hoje estou impedido de ser o cidadão, constituir família, ter um cantinho privado. Melhor dizendo, fui atirado à privada pela contundente propaganda oficial e ideológica.

Hoje lamento que a ação política está bem distante das promessas. Vejo o tradicional jogo do poder. Vejo a justiça e o direito dos poderosos contra os humildes, contra as Leis, contra o próprio discurso. Tenho pouco tempo de vida e sinto que não verei o Brasil do sonho de tantas gerações, como aquela geração da minha juventude.

Senhores membros da Comissão de Anistia, o que peço é o simples cumprimento da Lei. Que José Anselmo dos Santos seja anistiado. Ele não pode pagar eternamente pelo personagem inventado, o “Cabo” Anselmo, na verdade, um marinheiro que entrou de gaiato no navio da História mal contada do Brasil.

Texto enviado ontem por José Anselmo dos Santos, via e-mail, para o Alerta Total. Anselmo se recusa a dar entrevistas, pois alega que acabam deturpadas editorialmente. A partir de agora, promete se defender por escrito, dando sua versão pessoal da própria história, até agora mal contada.

O Drama do Homem que Não Existe

José Anselmo dos Santos é o verdadeiro nome do Cabo Anselmo. Cidadão que não existe perante a lei, ele apenas deseja que a Marinha emita seu documento de identidade, devolvendo-lhe a vida civil, e que a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça pare de enrolar e julgue, imediatamente, seu pedido de anistia (Processo nº 2004.01.42025).

O “cabo”, na verdade um marinheiro de primeira classe, foi o centésimo cassado pelo Ato Institucional número 1, em 1964. Expulso das Forças Armadas por liderar a Revolta dos Marinheiros, um dos estopins do golpe contra João Goulart, Anselmo acabou preso e colaborou com a repressão, delatando antigos companheiros.

Anselmo até hoje continua clandestino, vivendo sem identidade e como o único exilado “morto-vivo” da dita-dura (que, ao que tudo indica, persiste no Brasil, travestida de pretensa democracia).

Confira a reportagem do Jornal da Record, em 5 de julho de 2007, sobre a entrevista exclusiva feita pelo Editor-chefe do Alerta Total com José Anselmo dos Santos, em 4 de abril do mesmo ano.


A Marinha e a Comissão de Anistia precisam devolver a vida e a dignidade a Anselmo – um homem que não existe.




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