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quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A Bolívia que quer ser primitiva

Como Evo Morales está destruindo a economia e a democracia para criar um estado narcossocialista, com a sociedade organizada de acordo com costumes pré-colombianos


FALTA GÁS TAMBÉM PARA OS BOLIVIANOS
"Aqui tem fila todo dia", diz Miguelina Choque, dona-de-casa. A cada quinze dias, ela chega às 6 horas da manhã à fila do botijão de gás, distribuído pela estatal YPFB em certas ruas de La Paz. Desde a nacionalização do setor de energia, a produção de gás de cozinha não atende ao consumo interno. Miguelina diz que o botijão, que antes durava um mês, hoje acaba em quinze dias. "Também se tornou um martírio comprar óleo, carne, pão e arroz", reclama.

Por que é tão difícil acabar com o caos boliviano? A resposta é óbvia: a estratégia de poder do presidente Evo Morales só tem chance de sucesso se a oposição e a democracia forem subjugadas, mesmo que para isso seja preciso um banho de sangue. De outra forma, não há maneira de convencer os setores modernos e produtivos da sociedade boliviana a aceitar que a estrutura social do país seja recriada em um formato pré-colombiano, com a volta do açoitamento de criminosos e toda a economia nas mãos do estado. Por isso, apesar de representantes dos departamentos autonomistas e do governo terem sentado para conversar em Cochabamba, na semana passada, ainda é impossível falar em paz na Bolívia. No exato momento em que a reunião ocorria, soube-se que oito centenas de camponeses e mineiros fiéis ao presidente se dirigiam com armas na mão para o Departamento de Santa Cruz. O objetivo da turba era atacar aqueles que Morales qualifica de "capitalistas" e "oligarcas" da região mais dinâmica do país.


APOIO OBRIGATÓRIO
Líder de sua categoria, o lojista Marcelo Cortez organizou duas passeatas na última semana em apoio ao governo. Como faz isso? "O comparecimento é obrigatório. Quem não vai sofre sanção", revela Cortez. Quem falta a uma manifestação tem sua loja fechada por três dias. Quem falta a duas fica de portas fechadas por uma semana. Quem não aparece em quatro eventos tem seu estabelecimento fechado para sempre. É a democracia de Morales em ação!

A intransigência ultrapassa a histórica rixa entre os departamentos do ocidente e do oriente, entre o altiplano, no qual povoados indígenas vivem de modo tradicional, e as planícies da Amazônia, onde bolivianos de todos os matizes se integraram ao mundo moderno. Morales quer "refundar" o país e "construir um estado novo" – como está escrito na Constituição que ele fez aprovar numa reunião legislativa secreta, sem a presença da oposição, e agora pretende submeter a referendo. Nessa nova pátria, não haverá espaço para o capitalismo, para o empreendedorismo e para a democracia. "Enquanto no Brasil historicamente se busca a continuidade, na Bolívia se quer sempre começar tudo de novo", disse a VEJA o historiador Jorge Siles Salinas. "E isso só se faz com violência, com sangue."

Seguindo o mesmo modelo testado e reprovado na Venezuela, Morales está à frente de uma febre estatizante. No país de Hugo Chávez, o esfacelamento econômico é compensado pelos dividendos do petróleo vendido aos Estados Unidos. A Bolívia, cujas reservas de petróleo e gás têm um décimo do tamanho das venezuelanas, não desfruta esse privilégio. Para piorar, a nacionalização do setor perturbou a produção. A economia boliviana agora depende do dinheiro venezuelano e do narcotráfico. Desde que Morales subiu ao poder, dois anos atrás, a produção de cocaína aumentou em 13%. O presidente fez carreira política como representante dos produtores de coca e defende o uso tradicional da planta em chás ou para mascar. O problema é que o mercado tradicional de coca só absorve 17% da produção atual. O restante vai diretamente para os laboratórios dos narcotraficantes. "Em cinco anos, Morales transformará a Bolívia no que era a Colômbia há duas décadas", disse a VEJA a deputada Ninoska Lazarte, do partido oposicionista Podemos, em La Paz. Na terça-feira passada, quando ia entrar no Congresso, a deputada foi atacada por partidários de Morales. Eles puxaram seu cabelo e a cobriram de lixo. Tudo isso às vistas de policiais, que nada fizeram.

Enquanto a coca ganha espaço, o resto da economia vai de mal a pior. "O setor industrial não faz parte do programa de governo. Para Morales, somos os inimigos capitalistas", comenta Eduardo Bracamonte, dono de uma fábrica de jóias que exporta para as cadeias americanas Wal-Mart, JCPenney e Bloomingdale’s. A produção de soja caiu 55% nos últimos dois anos. A mineração entrou em colapso depois que a Comibol, a autarquia que supervisiona o setor, estabeleceu a sindicalização forçada dos mineiros que trabalhavam em cooperativas. "O governo quer sovietizar a Bolívia. Não aceita nenhum tipo de trabalhador independente", disse a VEJA o mineiro Samuel Flores, 62 anos e sem trabalho há dois por ter se recusado a aceitar as regras da Comibol. Até o setor energético – a bandeira do nacionalismo de Morales – vai mal. Depois da nacionalização, as companhias que atuavam no país desistiram de fazer novos investimentos. Como a Bolívia não tem recursos nem tecnologia para compensar a falta dos estrangeiros, a produção vem diminuindo. O clima na YPFB, a estatal do petróleo que recebeu de presente as refinarias, campos de extração e gasodutos, é de lambança. Pessoas sem experiência no ramo são nomeadas para altos cargos. O superintendente de hidrocarbonetos é contador e o vice-ministro de Energia, advogado. Santos Ramírez, um professor de escola rural catapultado a presidente da estatal, ganha oficialmente 3 800 reais mensais. Neste ano, comprou uma casa por 2,3 milhões de reais na zona sul da La Paz.




VÍTIMAS DAS MILÍCIAS DE MORALES
Desde janeiro, a Aliança da Praça Avaroa, que reúne centenas de jovens, manifestou-se oito vezes na capital boliviana, pedindo respeito aos direitos humanos, democracia e liberdade. Em todas as ocasiões, os manifestantes foram agredidos pelas milícias de Morales. "Mineiros nos atacaram com dinamite e os muros de nossas casas foram pichados com ofensas", diz o universitário Andrés Ortega. "Somos loucos em fazer oposição aqui."

Os absurdos do governo Morales causam revolta nos departamentos produtivos do Oriente, mas praticamente não são questionados no Altiplano. Na capital, sindicalistas e outros pelegos convocam pelo rádio marchas quase diárias de apoio ao presidente. Quem não comparece é punido pelo dirigente de seu sindicato ou agremiação. Outra maneira de convencer as pessoas a segurar faixas é com dinheiro. A participação numa passeata vale 30 reais. Quem se dispõe a fazer parte de um grupo de choque, especializado em agredir opositores, recebe 55 reais por dia. Estima-se que as milícias de Morales disponham de 5.000 integrantes prontos para cometer atos de violência, sempre que convocados por seus dirigentes. A mais violenta delas é chamada de Ponchos Rojos, que recebe ordens diretamente do presidente. No fim do ano passado, para demonstrarem o que pretendiam fazer com os "inimigos de classe", esses esquerdistas furiosos se puseram a degolar cães em La Paz. Desde que Morales assumiu o poder, em 2006, a violência política já fez meia centena de mortos. Esses são os primeiros corpos do mundo primitivo que Morales começa a criar.
Duda Teixeira, de La Paz
Revista Veja



Imagens do difícil dia-a-dia
A revista VEJA esteve na capital boliviana La Paz para contar um pouco da realidade do país. As fotos são de Anderson Schneider, que viajou com o repórter Duda Teixeira.

“A oligarquia não passará”, gritava na quarta-feira, dia 18, um grupo de indígenas em frente ao Palácio do Governo, em La Paz. Nos cartazes e faixas, palavras de ordem contra os governadores dos departamentos de oposição. Após meia hora de manifestação, todos se reuniram para incluir o nome em uma lista de presença. Entre os indígenas, quem não comparece ao ato pode ter um pedido recusado, como o de ter luz elétrica em casa ou asfalto na rua. “Fazemos porque somos obrigados”, disse uma das índias.
Fábricas de roupas, móveis e jóias se beneficiam atualmente de um acordo feito com os Estados Unidos para exportar sem pagar impostos. O tratado vence em dezembro e ninguém acredita que será renovado depois da expulsão do embaixador americano, há duas semanas. Cerca de 50 000 empregos devem ser perdidos. “O setor industrial não faz parte do programa de governo nacional. Para eles, somos os inimigos capitalistas”, diz Eduardo Bracamonte, dono de uma fábrica de jóias que vende para as cadeias Wal-Mart, JCPenney e Bloomingdale’s.

A deputada Ninoska Lazarte, do partido de oposição Podemos, construiu sua carreira política denunciando as fraudes eleitorais e a atuação dos cartéis de cocaína na região de Chapare. Tem sido constantemente agredida pelos movimentos sociais de Morales. A primeira vez foi em fevereiro, quando estava prestes a entrar no congresso. A segunda ocorreu na última terça-feira, dia 16. Puxaram seu cabelo, jogaram lixo sobre ela e a empurraram. Em ambas vezes, os policiais que resguardam a praça nada fizeram para impedir a agressão. “Há pelo menos quatro meses, vivemos em plena ditadura”, diz ela. “Nossos direitos não são mais respeitados.”
Marcelo Cortez, lojista e dirigente dos trabalhadores do setor de artesanato de La Paz, fala com orgulho sobre a quantidade de gente que levou para as duas passeatas da semana passada. Em cada uma delas, arrastou 1200 pessoas. Como ele consegue tal proeza? “Porque é obrigatório, quem não vai sofre sanções”, diz. Cortez explicou para VEJA como funcionam as punições. Quem falta a uma passeata leva uma bronca ou tem de fechar sua loja por três dias. Os que não comparecem a duas seguidas são obrigados a não trabalhar por uma semana. Se escapar de quatro passeatas, o estabelecimento deve ser fechado para sempre. O controle é feito com tíquetes de freqüência, entregues após cada ato público. “Precisamos participar da política para que possamos ser respeitados”, diz.
“Aqui tem fila todo dia”, diz a boliviana Miguelina Choque, de 65 anos. A cada quinze dias, ela chega cedo para a fila do botijão de gás, distribuído pela empresa estatal YPFB em caminhões que estacionam na rua. Como a nacionalização do setor de energia afastou investidores, a produção de gás liquefeito está no limite e não atende a demanda interna. A fila começa a se formar às 4 da manhã e chega a ter centenas de metros. Miguelina afirma que a situação piorou nos últimos dias. O botjão que antes durava um mês hoje não chega à metade disso e os bloqueios nas estradas a obrigam a passar pelo mesmo martírio para comprar óleo, carne, pão e arroz.
Em frente à catedral de La Paz, um casal passeava maquiado de palhaço na última semana. “Não queremos brigar, só queremos mostrar nossa indignação”, diz Annel Vargas, 25 anos, diplomada em agronomia há um ano. Os dois enfrentam um problema comum a todos com a mesma idade: arrumar emprego em um país onde as perspectivas se afunilam com velocidade inédita. Annel se graduou com o sonho de ensinar novas técnicas para os indígenas do altiplano. “Estão todos muito temerosos. Quando me aproximo, pensam que sou do Oriente ou que sou espiã dos Estados Unidos”, diz ela. Saul Selaes, formado em advocacia, também reclama: “O sistema judiciário está totalmente corrompido e não há perspectivas.”

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